Índices de Aderência Regulatória: regulação para quem?
28 set. 2023, por Rafael Sarto Muller, Doutorando em Letras, Mestre em Gestão Social, Economista e Analista de Sistemas, Técnico em Regulação pela ANTT-ES <linktr.ee/rafaelmuller776>.
1 Introdução
O presente estudo tem por objetivo avaliar a adequação metodológica utilizada na construção do Índice de Aderência Regulatória da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e, com isso, propor melhorias e soluções para a questão da fiscalização por desempenho e métricas.
Segundo as informações disponíveis publicamente na página sobre Índice de Aderência Regulatória 2023 <https://www.gov.br/antt/pt-br/assuntos/fiscalizacao-e-multas/IAR_2023_2> , o IAR teria por objetivo priorizar a fiscalização em empresas de baixa aderência regulatória, através da ponderação de desempenho e métricas pré-estabelecidas para determinar as empresas a serem fiscalizadas, ao que que nomeia “fiscalização responsiva”.
A proposição de objetivos, entretanto, não imediatamente significa que eles sejam atingidos com as métricas escolhidas. Da mesma forma que a rotulação de terminados indicadores não significa que tais indicadores indicam o que desejariam indicar segundo se poderia intuir de seus nomes. Essas são algumas das problemáticas levantadas nesse texto. A outra diz das premissas inadequadas usadas para a sua formulação, falhas de governo e seleção adversa na política regulatória atual e repercussões que esses textos (publicações divulgando determinados “resultados”; etc.) podem gerar e dos enganos prováveis aos leitores sobre os instrumentos implementados pela ANTT.
2 Dos objetivos
O texto sugere dois objetivos – um explícito e um implícito, intermediário –, gerando o primeiro problema. São eles:
a) priorizar ações de fiscalização – explícito;
b) identificar as empresas de baixa aderência regulatória – implícito e intermediário.
Inseri-los em uma mesma assertiva – priorizar ações sobre empresas de baixa aderência regulatória – sugere que, a partir do novo marco fiscalizatório, as fiscalizações serão direcionadas àquelas de baixa aderência regulatória, ocultando àquelas cuja informação sobre se estão ou não aderentes à regulação é vazia. A empresa sobre a qual nada se sabe é uma empresa aderente ou não à regulação? Essa é a primeira problemática que, não só teórica, estende-se às métricas hoje formuladas para tanto: o primeiro critério é justamente o número de fiscalizações da empresa no período.
Ainda que ponderado pelo número de mercados, os efeitos de sentido sobre o leitor nos casos que fogem à normalidade acabam por gerar distorções. O primeiro problema reside no sentido estatístico de normalidade – curva normal – ou seja, os outliers, cujos números de fiscalização são nulos – um absurdo, vez que se teria zero como denominador do cálculo – ou muito baixos. O segundo decorre do contexto de circulação deste texto: para o objetivo de “priorizar ações de fiscalização”, é válido priorizar também as empresas sobre as quais não se detém qualquer ou quase nenhuma informação. Entretanto, a ausência de informação não pode ser equivalente a informação negativa (a ausência de prova não deve ser prova do crime [perfeito, que não deixa indícios]).
Claramente, portanto, ainda que o primeiro critério tivesse o desejo de ser um indicador da aderência da empresa à regulação, o que ele indica de fato é a forma como a própria ANTT faz a gestão das suas ações de fiscalização.
Para fins de rankeamento interno, subsídio à gestão para direcionamento da fiscalização, seria um critério aceitável, mas não para fins de publicação e ampla divulgação, contexto de circulação em que a empresa será tomada, pela falta de informação (não fora fiscalizada), como não-aderente à regulação.
3 Das premissas
Adjacente ao problema da determinação da primeira métrica do rankeamento está o problema da coleta dos dados para tanto. Os ajustes das ações regulatórias ocorrem em um esquema que chamamos de heurístico ou iterativo: as fiscalizações trazem informações parciais que direcionarão fiscalizações futuras e o refinamento da qualidade das ações é dado pelas informações que, até então, foram possíveis de serem coletadas.
Um erro metodológico comum é o de crer que as informações até então existentes são suficientemente perfeitas. Entretanto, as variáveis monitoradas que foram escolhidas originalmente o foram com as informações até então possíveis à época. Com os avanços tecnológicos, com as mudanças das dinâmicas nos mercados, novas variáveis podem precisar ser incorporadas, ou as relações entre variáveis mudarem – é o que ocorrera, por exemplo, com a hiperliberalização do mercado de transporte rodoviário interestadual de passageiros, em que a liberdade tarifária desvinculou o preço do bilhete de passagem às variáveis estritamente técnicas (tipo de serviço, categoria do veículo, distância, calçamento das estradas percorridas no esquema operacional, etc.). Se antes o preço do bilhete não era obrigatoriamente monitorado (visto que poderia ser derivado dessa função múltipla que o determinava), agora o precisa ser, inserindo uma nova variável no esquema de monitoramento de mercado que um ente regulador deve fazer.
Similarmente acontece agora: ao considerar que “uma abordagem tradicional de fiscalização [...] pode ser aleatória ou reativa”, ignora-se a existência de um viés anterior. A fiscalização, em linhas gerais, organiza-se sob a forma de fiscalizações de rotina (majoritariamente em terminais rodoviários) e comandos operacionais. Tanto pelos critérios de custo quanto de passageiros atendidos e viagens fiscalizadas, os números de fiscalizações em terminais rodoviários acaba por angariar o maior volume dos dados. Além disso, com a disposição de equipes em horários comerciais (para coincidir com atendimento a público), serão mais fiscalizadas aquelas empresas cujas linhas estão em grandes entroncamentos/terminais e operem trechos mais próximos e/ou com maior fluxo de passageiros, o que repercute no número total de viagens.
Além disso, os procedimentos de fiscalização – os quesitos que são avaliados a cada ato fiscalizatório – também são diferentes em relação ao tipo. As operações de comando tendem a fazer um rito mais completo a cada veículo interceptado, o que é condizente com o custo operacional e o menor número de veículos abordados por fração de tempo. No caso das fiscalizações de terminal, o rito tende a ser simplificado – salvo em situações especiais – para que se dê atenção ao maior número possível de empresas e viagens, já que o fluxo de veículos e passageiros é muito superior.
Disso resulta que as empresas detentoras de linhas com seção em grandes terminais e linhas mais curtas são mais fiscalizadas e suas fiscalizações tendam a gerar proporcionalmente menos autos de infração por ação da própria agência (que averigua, na média, menos quesitos potencialmente geradores de autos de infração). Aquelas empresas cujos mercados incluem linhas mais longas, menos frequentes, longe dos grandes entroncamentos rodoviários, tendem a ser fiscalizadas por comandos operacionais, resultando no efeito contrário. É dizer: a pretensa “equidade do critério” não se efetiva de modo integral, senão apenas parcialmente. O erro anteriormente criado no primeiro critério é internalizado neste segundo, de modo que o tratamento matemático de ponderação aqui adotado não é suficiente para corrigir o desvio anterior, forjando uma equidade que já não existia desde antes.
Há de se recordar que as linhas dos grandes centros, linhas mais curtas e mais frequentes, tendem a ser mais rentáveis tanto pela redução dos custos (por exemplo, com centros logísticos, suporte aos veículos, garagens etc.) e pela alta disponibilidade de passageiros. São, portanto, empresas também com mais recursos disponíveis para sua regularização, vez que a aderência regulatória, do ponto de vista da empresa, corresponde a um custo regulatório, custo esse legítimo porque é traduzido em benefícios exatamente para a parte mais frágil da relação (o usuário), que deve ser protegida e que são o fim em si mesmo da própria regulação.
A adoção de tais critérios de aderência regulatória no contexto em que se tem hoje (contexto problematicamente aprofundado com a progressiva liberalização dos mercados) acaba por ir em rumo contrário à justiça distributiva. As empresas cujos custos decorrentes da atividade são menores e os lucros potenciais maiores (maior espaço de manobra econômica) serão, exatamente, as menos fiscalizadas. As empresas que já passam por dificuldades para manter a regularidade em vistas do efeito diametralmente oposto, serão as mais fiscalizadas e punidas.
Isso, em nível macro, é uma atitude da agência que acaba por favorecer a clandestinidade: se a empresa entra no rol das regulares, entra já com baixa nota na aderência, e será fiscalizada com mão forte – um viés punitivista –, de modo que lhe será potencialmente mais interessante manter-se na clandestinidade absoluta. Como a probabilidade de ser fiscalizada reduz-se, ainda que os prejuízos no caso de uma fiscalização sejam maiores, o produto do binômio probabilístico “chance de ser fiscalizado” x “prejuízos econômicos decorrentes da fiscalização” resulta vantajoso à clandestinidade. Assumir o risco da operação nesses termos é uma situação em que o último prejudicado é o usuário de locais ermos – já, naturalmente, subalternizado na conjuntura de desigualdade social e regional brasileira –, que não terá acesso ao transporte regular e de qualidade (um direito social garantido constitucionalmente, mas não devidamente operacionalizado).
O aprofundamento do punitivismo para reequilibrar o problema gerado já pela própria agência pode forjar legitimidade de sua atuação administrativa, mas não soluciona o problema do usuário (e, portanto, em termos de hermenêutica sociológica, perderia de tabela a legitimidade que tentava forjar). Isso porque, levado às últimas consequências, o punitivismo ensejaria a extinção absoluta de qualquer transporte coletivo interestadual nos rincões do país, terminando de isolar a população à sua própria sorte. Um problema para o qual facilmente a agência, seus dirigentes e grande parte da população poderia tapar os olhos, mas que nem por isso deixaria de existir e considerá-lo trata-se, portanto, de uma questão ética e humana.
Esse problema aqui descrito narrativamente, encontra-se presente já nas premissas da chamada “regulação responsiva”. Um instrumento de gestão considerado inovador e que vem para legitimar ações punitivistas contra grupos minoritários (no caso, pequenas empresas que não detêm as condições necessárias para manter sua operação dentro de certos limites legais).
Em linhas gerais, a “Regulação Responsiva” pretende “reforçar a mão-forte do Estado” contra aqueles que repetidamente não se enquadram nos ditames regulamentadores e “simplificar” para aqueles que os seguem.
A lógica adotada, em que pese aparentemente legítima (do ponto de vista senso-comum, novamente), apresenta uma falha enorme no atendimento a critérios mínimos de Segurança Jurídica.
O mercado regulado, sob o atual regime de autorização, enfraquece o modelo regulatório de subsídios cruzados, tornando mais difícil a sobrevivência de pequenas empresas nos rincões do país sem que o custo operacional seja parcialmente financiado pelas receitas de linhas mais rentáveis.
Com o modelo da “Regulação Responsiva”: aos que não têm condições de sobrevivência nos limites da lei, nos rincões do país, maior punitivismo; e privilégios para os já privilegiados que operam exclusivamente as linhas lucrativas do sul-sudeste.
Os infratores “de colarinho branco”, à similitude de empresas lucrativas que operam privilegiadamente mercados lucrativos com infraestrutura no sul-sudeste, acabam por ter a legislação ainda mais flexibilizada, aumentando suas oportunidades infratoras.
Isso afronta o princípio de Segurança Jurídica em sua origem e também uma série de disposições principiológicas e diretrizes da Lei 10.233/2001. Uma vez que se trata da utilização da estrutura de Estado como forma de legitimar a competição imperfeita e o privilégio de determinados infratores, fica caracterizado o prejuízo ao desenvolvimento econômico e social e a competição imperfeita.
Art. 11. O gerenciamento da infra-estrutura e a operação dos transportes aquaviário e terrestre serão regidos pelos seguintes princípios gerais:
I – preservar o interesse nacional e promover o desenvolvimento econômico e social;
[...]
Art. 12. Constituem diretrizes gerais do gerenciamento da infra-estrutura e da operação dos transportes aquaviário e terrestre:
VII – reprimir fatos e ações que configurem ou possam configurar competição imperfeita ou infrações da ordem econômica.
4 Das aderências
Vimos defendendo que há dois tipos de aderências que estão em jogo e não foram devidamente diferenciadas. Há a aderência das empresas à regulação, cujos indicadores devem indicar a adequação ou inadequação de comportamentos das empresas; e há a aderência da agência à regulação, cujos indicadores indicam a adequação ou inadequação de seus instrumentos de gestão e cujas repercussões devem ser internas, de gestão, não gerando externalidades para os administrados.
Essa diferenciação, entretanto, não sendo feita, resultará na responsabilização das empresas em todos os casos. Já destrinchamos o primeiro e mais explícito, já incorporado nas primeiras aplicações do IAR: o cômputo do número de fiscalizações (ação da ANTT) como critério de qualidade da empresa (rankeamento para baixo).
Tendo por histórico a falta de rigor metodológico no estabelecimento de índices, há o risco de outras variáveis de aderência da agência serem tomadas como critério de aderência da empresa, de modo que serão aqui mencionadas: em resumo, todos os problemas cadastrais.
O cadastramento é uma ação da ANTT de coleta de dados das empresas (documentos, comprovantes, certificados etc.) e seu devido cruzamento para a emissão – também pela ANTT – de um parecer sobre a regularidade basal da empresa (comprovação das condições de operar). As ações das empresas só começam efetivamente quando da operação do mercado regulado (realização de viagens).
Assim, a existência de incongruências ou irregularidades cadastrais nos cadastros da ANTT sobre a empresa indicam uma falha de gestão da agência e deve ser tratada como tal. Ainda que na linguagem comum faça-se a redução vocabular “cadastro sob domínio da ANTT sobre a empresa” para “cadastro da empresa”, isso não transfere, concretamente, a responsabilidade absoluta pela qualidade dos dados da agência às empresas. Trata-se de mero subterfúgio linguageiro.
Assim, casos de veículos não habilitados não são indicadores de irregularidades, visto que é algo crível em termos históricos pois veículos podem ser retirados de circulação do serviço interestadual e desabilitados exatamente por não estarem em uso para aqueles mercados. Similar ocorre com a pretensa discrepância entre muitos veículos habilitados e um pequeno mercado (pequeno número de linhas autorizadas pela ANTT): não se configurará indicador de não-aderência posto que os veículos podem estar habilitados para fins logísticos, sendo majoritariamente usados em outros mercados não afetos à ANTT, como no transporte privado, fretado (cujo número de viagens é incerto) e/ou intermunicipal.
Mesmo veículos habilitados com incongruências (Certificado de Segurança Veicular, Seguro de Responsabilidade Civil Obrigatório, Certificação do Cronotacógrafo inválidos e/ou vencidos e assim por diante) não prescrevem falta de aderência da empresa à regulação, vez que tais veículos, finda a validade desses itens, podem ser retirados de circulação indeterminadamente ou até sua renovação, sendo um indicador, portanto, apenas da qualidade dos sistemas internos de controles cadastrais da ANTT.
É esperado que as empresas operem de acordo com as prescrições regulatórias, de modo que virtualmente todo indicador de aderência regulatória precisará ter lastro em uma ação da empresa, ação essa que usualmente é caracterização pela realização de uma viagem. Assim, uma irregularidade associada à segurança de frota só se materializará e poderá gerar repercussões jurídicas (seja de rankeamento público ou de autos de infração) quando constatada a viagem com veículo em condições irregulares, o que hoje já é possível, por exemplo, com os dados do sistema de monitoramento embarcado cunhado Monitriip.
Esse último aspecto é, finalmente, contemplado parcialmente pelo quarto critério, que compara o número de viagens programadas (segundo a obrigação da empresa de realizá-las, nas frequências previstas durante outorga do mercado) com as efetivamente realizadas. Esse critério tem efeito misto: em parte programático, visto que a empresa possui a obrigação positiva de viajar determinado número de vezes; em parte reativo, porque coíbe o problema da escolha adversa, evitando que se torne mais vantajoso para a empresa não implementar o Monitriip e correr o risco de ser fiscalizada e autuada pela ausência do sistema e do envio dos dados.
5 Do erro justo
Em movimento de ponderação, refletimos também a respeito do que chamamos de “erro justo”. Os indicadores, como o próprio nome o sugere (apesar de quê, como vimos, dependendo de sua construção um nome/rótulo pode ser enganador), quando bem formulados, devem indicar, sugerir, aproximar um fenômeno concreto. Disso decorre que algum grau de generalização e erro estará sempre embarcado. Não se constitui motivo para recusa de um indicador quando o erro é considerado aceitável, uma baliza de fundo subjetivo, mas inevitável quando da aplicabilidade no mundo material. A aceitabilidade do erro decorre tanto de presunções probabilística, quantitativas e qualitativas. Um exemplo dela já está inserido no terceiro critério do atual IAR.
Prevê ele: “reclamações e denúncias elaboradas em desfavor das empresas na ouvidoria da ANTT”. Não há informações a respeito da realização ou não de análise de conteúdo ou redundância para fins de triagem e contabilização dessas reclamações e denúncias. Isso oferece um erro potencial: nos casos de um mesmo usuário abrir diversas reclamações para um mesmo fato; dos vieses decorrentes de assimetrias de informação entre usuários (usuários mais bem informados, normalmente nos grandes centros por questões de acesso, tendem a abrir mais reclamações e reclamações mais fundamentadas do que pessoas que, eventualmente, até desconhecem a existência da agência); das reclamações e denúncias que não configuram irregularidades no seu conteúdo (algo também da informação do usuário quanto à legislação e normativos atinentes ao mercado regulado de transporte coletivo rodoviário interestadual de passageiros).
Apesar disso, da análise das associações desses fenômenos com o contexto social, percebe-se a existência de um efeito tamponante muito provável sobre os dados desse tipo de métrica. Um mesmo usuário abrir várias reclamações pioraria o resultado da empresa, mas esse fenômeno de múltiplas reclamações por usuário tende a ser mais provável nos casos em que o tratamento da reclamação do usuário pela empresa é insatisfatório (fazendo com que o usuário persevere na reclamação, já que sua demanda não fora resolvida), justificando a contabilização.
Na mesma toada, as regiões centrais (usuários mais informados e mais hábeis nas reclamações) são, como vimos, as regiões privilegiadas em termos econômicos dentro do mercado regulado, de modo que a contabilização de tais reclamações tem um efeito similar à justiça distributiva.
Por fim, em se falando de um índice geral de qualidade das empresas, inclusive as ações das empresas que não configuram irregularidade do ponto de vista legal, mas não corroboram com princípios mais basilares de prestação de serviço de qualidade (cordialidade no atendimento, por exemplo, presteza na informação ao usuário, dentre outros), devem, sim, ser contabilizadas para a melhoria dos serviços. Também se segue daí que a informação aos usuários em sentido amplo – seus direitos e deveres, o funcionamento do mercado, as condições que o afetam, os procedimentos, dentre outros – é um tipo de responsabilidade compartilhada entre empresas, governo e o próprio usuário, com especial sopeso para as empresas, que são o polo forte da relação consumeristas, mais próximas do usuário para fins de alcance e, ao mesmo tempo, dotadas de discricionariedade para vários detalhes do funcionamento do mercado (e, portanto, as únicas detentoras da informação útil sobre procedimentos e ritos na contratação e usufruto dos serviços aos usuários).
Quando se percebem esses efeitos tampão na dinâmica relacional dentro do mercado, ainda que os erros aí associados tenham – como qualquer variável – um elemento subjetivo e incerto, ele-elemento é considerado desprezível em suas repercussões quantitativas, não sendo argumento crível para a rejeição da variável no seu todo.
Merece aqui uma nota redundante: restou demonstrado que, sob o aspecto da origem do dado, esse critério não é objetivo, como o finge sugerir o texto divulgado na página da ANTT ao dizer, forçadamente “critérios objetivos”. Em verdade, nenhum critério é nunca objetivo, ainda que tratado matematicamente para que assuma valores discretos, vez que a fonte dos dados resulta sempre de decisões humanas (o vimos também pelos modos como as fiscalizações são conduzidas em termos de frequência, localidade e tipo de fiscalização).
6 Do tratamento dos desvios
A última ponderação em termo de conteúdo decorre do macroprocesso de determinação da nota da empresa. Quando firmado sobre bases sólidas e adequados de indicadores, a conformação do índice exigirá, ao fim e ao cabo, a compilação/ponderação dos vários resultados numéricos dos indicadores/critérios individuais selecionados.
É das boas práticas em matemática e estatística que, sempre que possível, os arredondamentos sejam realizados apenas ao final do tratamento. Os arredondamentos – que são desvios suficientemente aceitáveis – realizados durante um macroprocesso de tratamento matemático avolumam-se e incrementam o risco de que, ao fim, o desvio prejudique o ranqueamento.
A título exemplificativo, se duas variáveis assumem, já nas etapas iniciais o arredondamento em likert de 5 pontos (por exemplo, valores de 80% a 100% serão considerado “1”), uma empresa que obtivesse aproveitamento de 80% em ambas receberia nota 1 (80% ~ 1; 80% ~ 1; 1 + 1 / 2 = 1). Noutra hipótese, uma empresa com 78% em uma variável e 98% em outra, receberia nota 0,9 (78% ~ 0,8; 98% ~ 1; 0,8 + 1 / 2 = 0,9), ainda que em termos originais o seu rendimento fosse muito melhor que a outra.
Não há, em termos matemáticos, depois de sopesados os resultados individuais das variáveis, nenhum entrave para que o cálculo seja feito sobre valores contínuos e, para fins de apresentação dos resultados à sociedade, ao final sejam realizadas as suas inclusões em faixas de resultados discretos.
7 Conclusões
Pelo presente estudo, conclui-se que o chamado Índice de Aderência Regulatória (IAR) hoje implementado no âmbito da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) não está construído de modo a indicar a efetiva aderência das empresas à regulação.
A característica geral dos problemas identificados está na não discriminação entre responsabilidades da empresa (operação do mercado) e da agência (gestão das informações do mercado e ações de fiscalização).
Não menos importante, identificou-se um viés recorrente de olhar punitivista da agência sobre o mercado (marcadamente sob o interesseiramente belo rótulo de “regulação responsiva”), o que coincide com um tipo de falha de governo que resulta em seleção adversa (que, no caso do mercado regulado, atinge primeiramente o binômio governo-empresa, fazendo com que a empresa opte pela clandestinidade; e não o binômio empresa-usuário, mais comum no âmbito da microeconomia em que o termo “seleção adversa” teve berço).
Em face da sequência de erros metodológicos, colocou-se como ponto de atenção o estudo do tratamento de incertezas e ponderação do que chamamos de erro justo, para que os poucos esforços considerados válidos não sejam desprezados a priori pelo empreendimento mal planejado.
Enquanto diretriz de solução está a discriminação de dois índices de aderência em separado: a) um índice de gestão interno, não publicizado, que identificará incongruências em sistemas da ANTT sobre dados cadastrais das empresas e monitorará os vazio do mercado regulado que não foram devidamente fiscalizados e sobre os quais não se tem informação, cooperando para a redução da assimetria de informação; b) um índice de aderência regulatória stricto sensu, com variáveis, métricas e critérios efetivamente afetos à operação das empresas, com recorte apenas para aquelas que possuem informações disponíveis, a ser publicizado para fins de atendimento aos critérios de transparência dos atos administrativos.
8 Anexo
Fonte: https://www.gov.br/antt/pt-br/assuntos/fiscalizacao-e-multas/IAR_2023_2 . Acesso em 28 set. 2023.
Índice de Aderência Regulatória
O IAR é uma iniciativa da ANTT para o mercado de transporte regular de passageiros que busca introduzir a fiscalização responsiva no âmbito da Agência.
Ao contrário de uma abordagem tradicional de fiscalização, que pode ser aleatória ou reativa, a fiscalização responsiva leva em consideração desempenho e métricas pré-estabelecidas para determinar empresas a serem fiscalizadas. Objetiva-se, com a adoção do IAR, priorizar ações de fiscalização em empresas de baixa aderência regulatória em detrimento das empresas com alta aderência.
Isso traz mais eficiência e eficácia às ações da ANTT, aumenta a regularidade das empresas e equilibra o mercado garantindo que todos cumpram as mesmas obrigações regulatórias.
O índice, planejado para ser escalonável, possui atualmente 04 (quatro) critérios objetivos pelos quais as empresas são avaliadas e, no futuro, pretende-se expandir esses critérios para abarcar mais itens regulatórios.
O índice é elaborado com dados de 15 de dezembro de 2022 a 15 de junho de 2023 e tem aplicação prática no segundo semestre de 2023.
Lista de empresas:
Foram consideradas para a confecção do IAR todas as empresas habilitadas com alguma licença operacional válida para operação do Transporte Interestadual Regular de Passageiros em Junho de 2023.
Lista de Empresas consideradas para formulação do IAR.
1º Critério:
O primeiro critério traz métricas sobre a fiscalização da empresa no período de análise. Ele garante que as empresas terão um índice amostral mínimo e permite à ANTT verificar a realidade dos serviços prestados pelas empresas por meio de fiscalizações presenciais.
A amostra mínima é diferente para cada empresa, levando-se em consideração, principalmente, a quantidade de mercados e submercados atendidos por cada uma.
2º Critério:
O segundo critério traz análises sobre as infrações lavradas em desfavor das empresas, incluindo-se o grau de severidade das infrações estipulado pela Res. ANTT 233/03.
De maneira a garantir a equidade do critério é levado em consideração, também, a quantidade de vezes que cada empresa foi fiscalizada.
3º Critério:
O terceiro critério traz a sociedade para dentro do IAR. Nele são consideradas as reclamações e denúncias elaboradas em desfavor das empresas na ouvidoria da ANTT.
4º Critério:
O quarto critério verifica a quantidade de envios que as empresas fizeram ao Sistema de Monitoramento do Transporte Rodoviário Interestadual e Internacional Coletivo de Passageiros – MONITRIIP. É feito um percentual em relação ao número de viagens programadas pelas empresas e o número de envios ao MONITRIIP.
Resultado:
Cada critério possui um peso, conforme sua importância, e eventuais empates são solucionados pela média simples da posição obtidas por cada empresa em cada um dos critérios.
Lista final de classificação das empresas segundo o IAR.