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CARTA PÚBLICA SOBRE AMEAÇA DE FIM DA CONDECINE E OUTROS RETROCESSOSNAS POLÍTICAS AUDIOVISUAIS

por Associação dos Servidores Públicos da Ancine (ASPAC)

aspac.contato@gmail.com


Link para carta em PDF: https://drive.google.com/file/d/1h9Hkv9rO3SUrCkTErz29RQY2jA6Hinpm/view


A proposta de fim da Condecine (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional), enviada esta semana pelo governo federal ao Congresso através da Lei Orçamentária Anual de 2023, é a mais nova etapa do ciclo de desmonte das políticas audiovisuais e, se concretizada, pode representar a pá de cal definitiva na produção audiovisual brasileira independente e plural, e ameaça a própria continuidade das atividades da Agência Nacional de Cinema.


A Condecine é a principal fonte de recursos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), que, juntamente com a política de cotas de conteúdos nacionais instituída pela Lei do SeAC (Lei 12.285/11), representou um gigantesco salto quantitativo e qualitativo na indústria audiovisual nacional, que passou a movimentar R$ 25 bilhões anualmente, sendo responsável por 0,46% do PIB brasileiro, e gerando mais de 330 mil empregos. Obras brasileiras geraram sucessivos recordes de público e obtiveram enorme reconhecimento internacional com premiações importantes mundo afora. Tudo isso com diversidade temática e regional das produções, ainda que persistissem desigualdades e gargalos que precisariam ser enfrentados para o aperfeiçoamento das políticas públicas. O cenário que vemos ser construído nestes últimos anos, no entanto, após o florescimento audiovisual da última

década, é de terra arrasada.


Precisamos lembrar que o sucesso recente das políticas de fomento está diretamente relacionado às políticas regulatórias, que passam por um momento crítico. A cota de tela para filmes nacionais em salas de cinema já não existe, e a cota de conteúdo nacional para a TV Paga tem validade garantida somente até 2023. A Ancine é uma agência reguladora, e

como tal, vem enfrentando o mesmo desmonte das políticas regulatórias pelo qual passam as demais agências. O mais novo retrocesso vem do Ministério da Economia, que, ao instituir o “Selo de Qualidade Regulatória”, ataca diretamente a autonomia técnica das agências garantida por lei. Antes disso, o Ministério da Economia já havia enviado ao Congresso o Projeto PL 3203/2021, que extingue mecanismos de fomento indireto da Lei do Audiovisual e da MP 2.2281/2001. O Ministério da Economia também criou um Grupo de Trabalho (GT-SeAC), junto com o Ministério das Comunicações, para propor mudanças (ou extinção) de políticas regulatórias audiovisuais, sem a participação oficial da Ancine, justamente o órgão que possui competência legal sobre o tema. Outra proposta patrocinada pelo governo e que ameaça todas as agências reguladoras é a PEC que prevê que atribuições regulatórias essenciais sejam passadas para “Conselhos” ligados aos respectivos Ministérios, esvaziando o papel das agências.


O grande debate regulatório do momento nas políticas audiovisuais de todo o mundo, porém, é a regulação dos serviços de VoD (Video on Demand, mais conhecidos como serviços de streaming), crucial para a sobrevivência de qualquer indústria audiovisual nacional no novo modelo dominante de mercado. Após realizar uma Consulta Pública em 2017, e seguindo as diretrizes oficiais do Conselho Superior de Cinema, a Ancine elaborou uma proposta de Condecine sobre faturamento com alíquota de 4% para destinação a produções nacionais, e cotas de conteúdo nacional nos moldes da regulação adotada pela União Europeia. Nos últimos anos, no entanto, enquanto diversos países avançaram na regulação dos serviços de VoD, a gestão da Ancine retrocedeu nos debates sobre o tema, e o atual diretor-presidente Alex Braga participou da elaboração de um proposta de regulação que não prevê cotas, e estabelece uma Condecine sobre faturamento que na prática seria limitada a 0,27%, de longe a menor do mundo, num volume de recursos menor inclusive que o já praticado atualmente. Se a proposta for aprovada, será na verdade a oficialização da não-regulação, transformando o Brasil em paraíso fiscal das empresas de VoD.


Outro aspecto fundamental que chama a atenção em todos estes casos de ameaças às políticas regulatórias e de fomento da Ancine é a completa omissão da atual diretoria colegiada, que inclusive se calou sobre esta grave ameaça de fim da Condecine. Nas raras

manifestações públicas dos atuais diretores, o papel da regulação é sempre diminuído, como algo desnecessário ou que deve ser “flexibilizado”. Não à toa, a principal norma regulatória do audiovisual brasileiro na atualidade, a Lei 12.485, que instituiu as cotas na TV Paga, vem tendo sua regulamentação progressivamente flexibilizada pela diretoria da Ancine, que também encerrou as atividades do sistema de monitoramento da TV Paga, o que dificulta enormemente a fiscalização do cumprimento das cotas.


Impossível falar de política audiovisual no atual governo sem abordar as denúncias de censura, corroboradas até mesmo pelo então Secretário Nacional da Cultura. Os prejuízos

vão muito além das obras censuradas, afetam até mesmo a continuidade das políticas públicas. Após denúncias de censura a filmes brasileiros com temática LGBT em festivais em Portugal, a Ancine encerrou o Programa de Apoio à Participação Brasileira em Festivais Internacionais. Após a escolha do filme “A vida invisível”, dirigido por Karim Aïnouz (cuja exibição a servidores da agência foi proibida), a Ancine encerrou o Programa de Apoio Financeiro aos filmes brasileiros de longa-metragem indicados ao Oscar. Após a escolha de um filme sobre torturadores da era Pinochet no edital bilateral de coprodução internacional Brasil-Chile, a Ancine encerrou todas as parcerias bilaterais de coprodução internacional, abrindo mão dos recursos que os parceiros internacionais investiam no audiovisual brasileiro. Após a denúncia de que o site oficial da agência (que costumava divulgar todos os lançamentos de filmes nacionais) havia censurado a divulgação de “Torre das donzelas”, documentário sobre presas políticas na ditadura militar, dirigido por Susanna Lira, a Ancine retirou a divulgação de qualquer obra nacional de seu site, e proibiu os cartazes na agência. A censura se dá não só pela proibição explícita, mas também pelo direcionamento dos recursos segundo critérios ideológicos.


O acompanhamento do que ocorre na Ancine se torna difícil até mesmo para quem nela trabalha, tanto pela ausência de diálogo com os servidores, quanto pela falta de transparência, com sigilo generalizado dos processos administrativos e descumprimento reiterado da Lei de Acesso à Informação. Não se pode sequer contar com a instância recursal: em 2022, por exemplo, a Diretoria Colegiada negou por unanimidade todos os recurso de pedidos de acesso à informação, e em 2021 a situação foi quase idêntica.


E assim os programas de fomento vão minguando, as fontes dos recursos secando, o papel regulatório da agência diminuindo, a fiscalização se tornando mais difícil, e o assédio institucional se normalizando. Nós, servidores, temos tentado resistir em condições extremamente adversas, em que servidores têm sido sumariamente desligados do Programa de Gestão sem qualquer fundamentação legal ou normativa. Até mesmo o Programa de Qualidade de Vida, voltado à saúde física e mental dos servidores, ganhou caráter punitivo e excludente. É preciso, mais do que nunca, união e mobilização de servidores da cultura e agências reguladoras, profissionais da indústria audiovisual e sociedade civil para lutar contra o fim da Condecine, contra o fim das políticas de cotas para a TV paga e salas de cinema, por uma regulação efetiva do mercado de VoD, pelo fortalecimento do FSA e por uma política cultural eficiente, inclusiva, diversa e democrática. Tudo isso passa também pela valorização do serviço público e fortalecimento das agências reguladoras, que precisará ser uma das grandes tarefas do próximo governo.




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