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O “Programa de Gestão” traz a uberização ao serviço público federal

Por Leo Vinicius

Originalmente publicado em Passapalavra


Ano passado, respondendo a uma questão posta por um amigo, eu disse que duas características do trabalho de motoristas e entregadores de aplicativo tendem a se generalizar, pelo menos no setor de serviços: a externalização dos (custos dos) instrumentos de trabalho ao trabalhador; e o salário por peça (ou salário por tarefa).


Na última década tem sido aberta e normatizada a possibilidade de realização de teletrabalho no serviço público em substituição ao controle de frequência. No serviço público federal do Poder Executivo, uma Instrução Normativa no governo Temer foi editada nesse sentido. Essa Instrução Normativa foi substituída por outra no governo Bolsonaro, a IN 65. E mais recentemente o Decreto 11.072, de 17 de maio de 2022, instituiu o Programa de Gestão de Desempenho (PGD). Esse Decreto normatiza o PGD para o teletrabalho, mas também deixa a possibilidade da autoridade máxima do órgão estabelecer o PGD como obrigatório mesmo para os servidores que permaneçam em trabalho presencial.


No PGD, que tende a ser adotado por um número muito maior de órgãos federais a partir deste ano, o servidor deve enquadrar sua atividade numa lista de tarefas em que cada uma delas corresponde a um número de horas de trabalho, a partir de graus de complexidade estabelecidos. Por exemplo: “elaboração de texto técnico” de média complexidade correspondendo a 40 horas de trabalho; “participação em reunião” correspondendo a 4 horas de trabalho. Tais listas são elaboradas por cada órgão. Ora, além de, na modalidade teletrabalho, o servidor ser responsável pelos custos com os instrumentos de trabalho e insumos, como internet e energia elétrica, o PGD insere no serviço público o princípio do salário por peça. O salário deixa de estar vinculado à disponibilidade da força de trabalho por oito horas diárias, e passa a ser pago por tarefa, até o limite que corresponde ao salário de oito horas.


Mesmo que, dependendo do tipo de atividade e da gestão de cada órgão, ainda esteja relativamente distante a percepção por parte dos servidores de que estão sendo pagos por peça (tarefa) quando aderem ao PGD, o instrumento que tende a disseminar o salário por peça no serviço público federal já está instituído, e ele recebeu o nome de Programa de Gestão por Desempenho. Nos órgãos e atividades em que o servidor basicamente analisa processos que aguardam numa fila que nunca termina, a princípio ele não percebe que está sendo pago por peça no PGD, porque alcançar o salário correspondente às oito horas diárias não parece, ainda, estar sob risco.


Importante notar que o teletrabalho e a flexibilidade (de horários, de localização, de não precisar se locomover etc.) associado a ele, tem sido um desejo de grande parte dos servidores. Similarmente, a maioria dos entregadores de aplicativo valorizam a flexibilidade que possuem em relação ao vínculo celetista (quando não estão em modalidades como o OL da iFood, em que não precisam cumprir jornadas diárias fixadas por um chefe). Aderir ao teletrabalho e às suas normas de produção e de metas tem sido uma opção de muitos servidores. Essa adesão não é obrigatória, embora o decreto de maio de 2022 aponte a perspectiva da obrigatoriedade do PGD para todos os servidores.


Os sindicatos dos servidores públicos, em geral, têm desprezado esse desejo dos trabalhadores. Acabam tendo em grande parte uma posição conservadora e ineficaz, pois se colocam contra o desejo da base. Opõem-se ao teletrabalho, em vez de lutarem para que ele seja estabelecido em condições mais favoráveis aos trabalhadores. Em grande parte a mesma dinâmica obtusa ocorre por parte da esquerda em relação ao desejo de grande parte dos entregadores de não quererem ter vínculo empregatício na forma que ele existe hoje.


Os novos regimes de exploração, pós-fordistas, se valem do desejo dos trabalhadores. Evidentemente os gestores e empresários só respondem a esse desejo quando a forma através da qual esse desejo é respondido traz um ganho a eles, ou quando são obrigados a isso pela luta dos trabalhadores. No primeiro caso os gestores e empresários possuem total controle sobre as condições em que a flexibilidade desejada existirá. No segundo caso, as condições são determinadas, pelo menos em parte, pelos trabalhadores. Flexibilidade e possibilidade de trabalhar em casa ou em qualquer lugar é um desejo dos servidores públicos. Mas era possível realizar isso de outra forma, com outras condições, em um processo que respeitasse a especificidade de cada atividade e sem abrir espaço para o salário por peça e a uberização do serviço público. Infelizmente os sindicatos foram omissos ou conservadores para tanto, e os servidores receberam a forma que veio de cima, as regras para o teletrabalho, como uma opção a mais, sem perceberem o que vinha na barriga desse cavalo dado.


Por fim, deve-se notar também que a separação da atividade de trabalho em tarefas discriminadas e cronometradas, como é realizado no PGD, é da mesma família do taylorismo na sua cronometria de gestos isolados do trabalhador, buscando um padrão de tempo entre a diversidade de seres humanos no processo de trabalho e, acima de tudo, o controle maior dos gestores sobre o processo de trabalho. O PGD, por sua vez, é concebido como se todo trabalho pudesse ser igualado e reduzido a algo quantificável, a partir de princípios que seriam comuns às diferentes atividades. Toda atividade é reduzida a trabalho abstrato, intercambiável, medido em tempo. O trabalho concreto desaparece. Se a proletarização de uma ocupação é resultado da quantificação e padronização do trabalho, a generalização do PGD será a generalização da proletarização a diferentes atividades do serviço público, como, por exemplo, as atividades de pesquisa. E uma vez que com o PGD o servidor é pressionado a cumprir uma série de tarefas que na tabela do órgão corresponda à sua jornada de trabalho trimestral ou semestral, de modo a não ser descontado na folha de pagamento, a tendência é que a qualidade do trabalho se reduza e o aumento da ineficiência também, como a multiplicação de reuniões inúteis, mas que podem ser somadas na carga horária.


Flexibilidade sim, opção de teletrabalho sim, mas o PGD é o Cavalo de Troia que estabelece o instrumento a ser usado para a uberização do serviço público. A flexibilidade pode muito bem ser estabelecida em outros termos.

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