O que o assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips diz a nós, servidores públicos?
Por Yandra Torres, servidora da Anvisa, e Henrique Souza, servidor da Ancine

Ainda faltam muitas respostas quanto à elucidação do crime, quanto aos executores e mandantes do brutal assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips. É preciso que essas respostas sejam incessantemente cobradas para que este não seja mais um crime impune como o caso de Maxciel Pereira dos Santos, outro indigenista da FUNAI assassinado em 2019 como retaliação por cumprir seu dever funcional. Mas além da autoria direta, é preciso responsabilizar também quem deliberadamente estimulou e criou as condições para estes crimes, e neste caso já sabemos bem quem são os responsáveis.
A violência na Amazônia contra populações indígenas, ambientalistas, ativistas e servidores públicos sempre foi um problema sério, mas se agravou drasticamente no atual governo, pois o que antes era omissão estatal por descaso, agora é política governamental anti-indígena e anti-ambientalista a serviço de todo tipo de interesses, digamos, pouco republicanos. A rigor, a política de extermínio que o governo hoje patrocina na Amazônia é o cumprimento de promessa de campanha, como podemos constatar pelo que Mário Magalhães escreveu já em outubro de 2018, em seu livro “Sobre lutas e lágrimas”: "Bolsonaro já defendeu que 'desapareçam' as minorias que não se 'adéquem' às maiorias. Depois do 1º turno, prometeu 'botar um ponto final em todos os ativismos'. 'Desaparecimento' e 'ponto final' são conceitos associados a aniquilamento e extermínio."
O assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips é especialmente simbólico por sintetizar o resultado das diversas faces da necropolítica governamental contra as populações indígenas, contra o meio ambiente, contra os “ativismos”, contra os direitos humanos, contra a imprensa e contra os servidores públicos.
E é enquanto servidores públicos que gostaríamos de nos solidarizar aos familiares das vítimas, aos indígenas do Vale do Javari e aos colegas da FUNAI. Afinal, Bruno Pereira era um servidor público como nós, exonerado da coordenação responsável pelos povos isolados por cumprir seu dever funcional e perseguido institucionalmente ao ponto de ter que pedir licença sem remuneração para poder prosseguir com seu trabalho.
Como já vimos em outros casos nos últimos anos, porém, o assassinato físico não é suficiente, o governo insiste em difamar a memória dos mortos. Tanto o Presidente da República quanto o Presidente da FUNAI proferiram publicamente mentiras sobre o servidor Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips, em última instância atribuindo aos próprios a causa do assassinato. Esta semana os servidores da FUNAI fizeram paralisação de 24h exigindo retratação pública quanto às mentiras, mas não foram atendidos. Para além da demonstração da falta de apreço pela verdade (e os correspondentes crimes implicados), é chocante a completa insensibilidade pela vida e pelos mortos demonstrada reiteradamente pelo Presidente da República e seus auxiliares.
A INA (Indigenistas Associados) lançou recentemente um dossiê com diversas denúncias que confirmam a transformação da FUNAI numa “fundação anti-indígena” desde que Bolsonaro nomeou para sua presidência um policial. A FUNAI hoje, a despeito da brava resistência de seus servidores, é usada como parte do aparato de criminalização dos povos indígenas. Mas o aparelhamento da FUNAI através de sua militarização não parou por aí, a INA também denuncia que das 39 Coordenações Regionais, atualmente apenas duas têm à frente servidores concursados. 19 são chefiadas por oficiais das Forças Armadas, três por PMs e duas por policiais federais.
A INA denuncia ainda uma deliberada política de assédio institucional na FUNAI, com aumento dos números de PAD, que levou ao aumento de pedidos de licença sem remuneração e até mesmo de pedidos de exoneração: “A ocupação militar e policial da Funai tem efeitos diretos no cotidiano dos servidores do órgão. Relatos de assédio são comuns, especialmente aqueles relacionados à imposição de obstáculos ao exercício de funções. Como formas de constrangimento, desrespeito e punição, servidores com posicionamento técnico divergente da orientação anti-indígena da Funai viram suas competências serem retiradas, deixaram de ter acesso a processos nos quais estavam envolvidos, passaram por deslocamento de funções e lotações à revelia e ainda ameaça de remoções, às vezes efetivada.”
Apesar de a situação na FUNAI ser especialmente grave, estes relatos soam familiares a servidores de diversos outros órgãos públicos federais, que também vêm sofrendo com crescente aparelhamento, militarização, precarização salarial e das condições de trabalho, assédio institucional e desmonte das políticas públicas, ao ponto que muitos deste órgãos acabam desempenhando função oposta à que deveria ser seu papel. Situações similares vêm sendo denunciadas por órgão ambientais (MMA, IBAMA, ICMBIO), da educação (CAPES, INEP) e da Cultura (Fundação Palmares, IPHAN).
Estudo recente realizado pelas professoras da FGV Gabriela Lotta e Mariana Silveira traça um quadro de assédio institucional generalizado em diversos órgãos federais semelhante à situação denunciada no dossiê do INA sobre a FUNAI, e identifica as principais estratégias de assédio praticadas no atual governo: opressão física (controle da movimentação dos funcionários públicos nos locais de trabalho); opressão sobre as rotinas administrativas (proibição de acesso a sistemas e ferramentas de trabalho); opressão moral e social (burocracia de vigilância, ameaças e declarações de desvalorização e descrédito da legitimidade dos servidores); e táticas de silenciamento dos burocratas (proibição de participação em reuniões ou eventos, aplicação indevida de processos administrativos, proibição de uso de redes sociais, de dar entrevistas ou de publicar artigos). O estudo indica ainda que, nos cenários de assédio no governo federal, os servidores buscam “desaparecer", o que se dá por meio de estratégias como pedidos de demissão, afastamento, mudança de setor e licenças ou meramente a invisibilidade, isto é, os servidores passam a fazer o mínimo possível para não serem percebidos nesses ambientes. Assim, o assédio institucional sofrido por Bruno Pereira, que é parte dos fatores que conduziram ao seu assassinato, não é exceção, é a própria concretização da política do atual governo para os servidores públicos, sempre tratados como “inimigos” e “parasitas”. Acreditamos que servidores de diferentes Agências Reguladoras conseguem reconhecer algumas dessas condutas, certo?
Esta cultura autoritária se entranhou na máquina estatal a tal ponto que deturpou as finalidades de todas as políticas públicas e, se não houver ampla e urgente mobilização dos servidores públicos e da sociedade civil, não será revertida com simples trocas de chefias após eventual vitória eleitoral.
Nós, servidores públicos, estamos cada vez mais precarizados, ameaçados, amedrontados, vendo a finalidade pública de nosso trabalho ser deturpada. Mais que lamentar, precisamos nos perguntar: o que fazemos para mudar a situação? E como nos organizarmos para enfrentar esta escalada autoritária do Brasil que nos ameaça diretamente a todos e todas?
Bruno Pereira, servidor público, vítima do Estado brasileiro por apenas fazer o seu trabalho. Tão perseguido que decidiu se afastar em licença sem vencimentos. Não foi o primeiro, e se não abraçarmos essa causa como nossa, também não será o último. Talvez possa parecer um caso distante de nossa realidade, mas mais cedo ou mais tarde o autoritarismo e a normalização da violência atingem a todos nós.
Mais do que lamentar, é preciso atitude, e neste momento defender o serviço público significa nos somar à luta dos colegas da FUNAI que também é nossa luta, e em última instância é a luta por um país minimamente digno e justo. No momento, em diferentes Agências Reguladoras a segurança jurídica que nos permite desenvolver nossas atribuições funcionais com autonomia técnica é ameaçada. Essas práticas podem carregar diferentes nomes como “simplificação de análises”, “iniciativas regulatórias” ou podem surgir de diferentes nichos de atuação, como Congresso Nacional, Diretoria Colegiada, ações judiciais impetradas pelo setor regulado.
Você já se perguntou ou refletiu sobre como as mudanças impetradas no seu processo de trabalho de cima para baixo pode mascarar desvios de finalidade? Já conversou com seus colegas sobre estratégias coletivas para proteger o trabalho que realizam em sua área? Já pensaram em como as organizações por local de trabalho conferem segurança a cada um dos envolvidos ao coletivizar as reivindicações apresentadas? Já foi chamado a apoiar a pauta de reivindicações de colegas de outras áreas? Já discutiu com colegas de outros órgãos federais sobre as similitudes das condutas predatórias à função pública?
Assim, reafirmando nosso pesar, conclamamos a cada pessoa que nos lê para, em homenagem a Bruno Pereira e Dom Phillips, construir práticas solidárias no dia a dia dos trabalhadores impedindo que outro servidor público seja silenciado. Sejamos oxigênio em nossas lutas!