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Quem é o Fardo de verdade?

por Rafael Sarto Muller, ANTT/ES, https://linktr.ee/rafaelmuller776


1 Introdução

Existe uma tendência mais ou menos geral de pensarmos que determinados assuntos “técnicos demais” não nos são afetos ou não podem ser minimamente compreensíveis. Esquecemos que todo assunto técnico se apoia sobre bases mais generalistas: algo específico do direito regulatório e econômico (que iremos tratar hoje aqui) está, antes, determinado por uma visão de sociedade – nossas posições políticas não são algo que consideramos incompreensível; temos suficientemente boa consciência delas, e – fazendo esse vínculo – faço o convite à leitura deste texto que, originalmente, fora um parecer a respeito de mudanças nos normativos de transportes terrestres.


No mundo jurídico, dá-se muita atenção e valor à legalidade: o que está escrito em leis e normativos é presumidamente bom e deve ser seguido. Tece-se um verdadeiro culto ao Estado Democrático de Direito, sem nos atentarmos que esse “de Direito” muitas vezes nada tem de democrático. Uma inteligência crítica, a ética de um servidor público, pode muito bem ir na contramão do “obedece quem tem juízo”, e o conflito entre “fazer justiça” e “obedecer às leis” é muito mais frequente para aqueles que ainda têm olhos do que costumamos imaginar.


O caso chegou como uma Consulta Interna para Adequação da Política de Redução do Fardo Regulatório da ANTT. As normas a serem estudadas, portanto: o Decreto 10.411/2020 <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Decreto/D10411.htm>, que regulamenta a análise de impacto regulatório (AIR) [geral para vários órgãos] e a Resolução ANTT 5874/2020 <https://anttlegis.antt.gov.br/action/UrlPublicasAction.php?acao=abrirAtoPublico&num_ato=00005874&sgl_tipo=RES&sgl_orgao=DG/ANTT/MI&vlr_ano=2020&seq_ato=000&cod_modulo=161&cod_menu=5408> [específica para a ANTT], que institui a Política de Redução do Fardo Regulatório (PRFR) e possui um Manual em anexo para os cálculos que deverão feitos durante a AIR.


Em linhas gerais, a AIR é uma proposta de se pensar – e registrar – os motivos e as consequências de uma ação regulatória antes que ela seja executada. Se uma nova regra deve ser criada, ou se uma regra antiga deve ser revogada, por exemplo, e quais os efeitos disso. Com a sensação de que no Brasil “há muitas regras” e na onda da “simplificação” (revogaço, liberalização geral), iniciou-se o movimento de acabar com várias dessas normas e deixar que “O Mercado” se autorregulasse. Entretanto, simplesmente revogar tudo unilateralmente encontraria (e encontrou) resistência popular, que sabe que “O Mercado” busca apenas o seu lucro à base de exploração dos trabalhadores e consumidores. Para dar ares de cientificidade a algumas dessas decisões autoritárias (principalmente em temas ditos “técnicos” como economia, regulação e transportes), usam-se de métodos [maquiagens] matemáticos e com uma linguagem dificílima dificulta-se que a população questione o que está sendo feito.


Entraremos agora, então, na parte mais específica: destrinchar COMO são arquitetadas as leis e os cálculos matemáticos para deixar as brechas para que a exploração econômica predatória e a submissão de todo o povo e o Estado ao Mercado sejam feitas de modo legalizado.


Os tópicos principais serão:


a) o que é inserido e o que é deixado de fora (propositalmente) das leis e dos cálculos, para dar enganar o público;

Síntese: 1. o decreto cria exceção para Banco Central e Comissão de Valores Mobiliários – segundo o decreto, esses órgãos não precisam justificar com AIR as suas decisões monetárias e cambiais; 2. o manual deixa de fora a contabilização dos benefícios das normas para a sociedade, de modo que só se contabilizam os custos para as empresas e, assim, 100% das normas serão julgadas “custosas”, “fardo”, passíveis de revogação imediata.


b) quem são as instituições estrangeiras que são tomadas como referência inquestionável e o Brasil aplica as suas recomendações de modo acrítico;

Síntese: OCDE, Austrália e Estados Unidos e grandes holdings internacionais ditam as decisões nas cúpulas do poder brasileiro nos temas aqui estudados e privilegiam as empresas que lhes interessam para sabotar e monopolizar o mercado de modo anticoncorrencial.


c) o uso perverso de palavras bonitas (“boas práticas regulatórias baseadas em evidência”) ou cheias de carga emocional (“fardo regulatório”) para enganar o leitor.

Síntese: usa-se o termo “fardo” para toda e qualquer norma (sem antes se analisar se ela é de fato prejudicial); usa-se o termo “baseado em evidência” para que as decisões levem em consideração apenas informações já estruturadas, numéricas, de interesse das empresas, ignorando benefícios para a sociedade hoje não contabilizados (são previamente já considerados “sem evidência” e ignorados).


2 A incompletude dos cálculos

O manual <http://anexosportal.datalegis.net/arquivos/1368553.pdf> para o cálculo do fardo regulatório apresenta-se incompleto, com problemas metodológicos e parte de premissas não aplicáveis ao caso brasileiro, de modo que utilizá-lo constituiria prejuízo para o mercado regulado e a sociedade.


Inicialmente, quanto à incompletude, não são apresentados os métodos de cálculos dos benefícios para a sociedade e a economia brasileira. As menções aos benefícios dão-se de forma genérica nos trechos iniciais do documento e, depois, apenas na descrição dos “custos de compensação” como “benefícios gerados pela ação regulatória, normalmente quantificados em termos monetários”. Além da problemática na escolha terminológica que coloca “custo” e “benefício” como sinônimos (em seu uso corrente, são termos opositores em termos de decisão econômica, vez que custos devem ser evitados e reduzidos, enquanto benefícios buscados e aumentados), a parte do documento à folha 11 que se propõe ao detalhamento dos “custos de compensação” se resume a afirmar que eles devem ser maiores que o fardo regulatório. A metodologia para os calcular não é apresentada.


A partir daí, com a sinonímia entre “custos de compensação” e “benefícios” e a redução do termo aos aspectos monetários, a análise que dá suporte à decisão de redução ou não do fardo regulatório acaba se restringindo aos custos e benefícios (baseados apenas em redução de custos) para as empresas, retirando-se os benefícios sociais e econômicos das normas do escopo do método. Isso é reforçado com a Tabela 12, em que a estimativa dos “custos de compensação” está associada às técnicas afetas a investimentos, custeio, dimensionamento de pessoal, remunerações e custos não salariais, todos atributos internos às empresas.


Ainda que se pudesse afirmar que essa metodologia é restrita ao cálculo para as empresas, isso faz com que o manual que operacionaliza a PRFR não esteja alinhado à Resolução 5874/2020, vez que lá está descrito como princípio “os ganhos sociais oriundos da medida de redução do fardo regulatório”, os quais não estão sendo levados em conta.


Ao ocultar absolutamente a contrapartida social, isso gera um viés insolúvel no método: como toda a contabilidade é feita exclusivamente associada aos custos das atividades internas das empresas reguladas, toda regulamentação, em termos quantitativos, será considerada um fardo regulatório (os benefícios da regulamentação em nenhum momento são contabilizados, nem em termos de vantagens sociais, nem em termos de receitas/recursos para as empresas), encaminhando a uma progressiva bancarrota de todos os normativos, indo contra, inclusive, o embasamento teórico do início do texto, em que se afirmava a importância de um conjunto basilar mínimo de normativos para a alocação eficiente de recursos.


3 A quem o Brasil se submete

Esse latente problema metodológico não chega a ser surpreendente vez que a principal referência de estudo apontado para a proposição da metodologia foi a OCDE, que declaradamente afirma as recomendações baseadas “na experiência de países membros”. A experiência que suporta empiricamente essas evidências está enviesada também: trata-se da experiência dos países membros, que é, notadamente, a daqueles países que exercem papel hegemônico sobre os mercados de capitais mundiais, de modo que as fontes de financiamentos para as suas empresas reguladas decorrem do próprio país e/ou de seus pares hegemônicos. Assim, lá, o desenvolvimento de indústrias de alto crescimento corresponde ao desenvolvimento do poderio econômico usualmente associado ao Estado-Nação. O documento cita expressamente as recomendações proferidas por Austrália e Estados Unidos. No caso brasileiro, tem-se uma grande dependência macroeconômica do país ao capital estrangeiro pela falta de controle do fluxo de capitais. Esse fato – ignorado no documento – tem sérias repercussões, em especial tendo em vista as premissas do documento. Vejamos:


Na folha 6, são apontadas como uma falha regulatória as regulamentações que protegem as empresas da concorrência, juízo de valor esse indevido no caso de dependência financeira, vez que as empresas consideradas mais competitivas serão exatamente as dotadas de maior aporte de recursos para a execução de projetos de ampliação, inovadores ou a prática de medidas anticoncorrenciais, como o dumping. Assim, em um contexto de concorrência estruturalmente assimétrica, a regulamentação de proteção contra a concorrência precisa ser também balizada conforme os objetivos de desenvolvimento econômico e social do país, de modo a proteger e subsidiar empresas nacionais com capital nacional, e não tomar tais regulamentações aprioristicamente como falhas regulatórias. Na mesma toada, as regulamentações seguintes “que impedem as empresas de crescer e explorar novos mercados” também precisam ser balizadas pelas características das empresas em questão, vez que a consideração de todas as regulamentações do tipo como falhas e fardos regulatórios acarreta a formação de monopólios e oligopólios prejudiciais à saúde do mercado regulado. A quarta falha regulatória é uma redundância da segunda, sobrepujando no texto a importância dada ao crescimento tecnológico das empresas pela visão do consumidor, deixando oculta a saúde e estabilidade do cenário econômico que esse crescimento pode gerar – no caso de um crescimento insustentável, como é a hipótese problemática que aqui trazemos.


Outro problema de base teórica é a inversão das relações de causa e efeito, designando a redução de preços como uma consequência da redução dos custos de regulamentação, pressupondo que essa redução seria necessária e integralmente repassada ao consumidor, o que não é verdade – sem as devidas formas de controle [que foram retiradas] elas majoram o lucro empresarial que, como vimos, é de capital majoritariamente estrangeiro nos casos das empresas “competitivas”.


O caso emblemático e elucidativo – didático – é a Buser, uma empresa clandestina que explora uma falha hermenêutica (não uma falha legal, pois há regulamentação suficientemente estruturada para coibir a sua atuação de predação econômica no país, mas a sua aplicação não é feita devidamente), considerada um startup que recebeu aporte de capital semente de valor não revelado a partir de três fundos de investimento, todos estrangeiros: Canary, Yellow Ventures e Fundação Estudar Alumni partners, aos quais até hoje já se somam mais quatro (SoftBank, Monashees+, Valor Capital Group e GloboVentures). A exclusão de determinadas regulamentações poderia criar – aí sim – o vácuo legal necessário para a operação predatória da empresa, vez que ela não oferta garantias aos usuários previstas em lei, como benefícios tarifários e gratuidades, nem atende a mercados que não lhe sejam interessantes financeiramente, uma forma ludibriosa de sonegar os subsídios cruzados e que gera desatendimento a populações que dependem do transporte (um direito constitucional) – métricas essas não contabilizadas na metodologia, vez que ela está restrita à redução de custos para as empresas e as externalidades foram deixadas de fora.


4 O círculo vicioso e as brechas do decreto

Outra problemática reside também nos custos excluídos. Um deles, decorrentes de custos indiretos decorrentes de mudanças nas estruturas dos mercados, é tautomérico: a própria redução do fardo regulatório corresponde a uma mudança na estrutura do mercado (seu arcabouço normativo), de sorte que, pelo método atual, as repercussões da própria redução não são contabilizadas, afundando as possibilidades de avaliação crítica das medidas a serem tomadas pela política em comento. Ora: se no próximo ciclo de análise a metodologia deixa de fora o ciclo anterior, não há esquema de retroalimentação possível para coibir a derrocada contínua dos arcabouços normativos, algo que reforça o grave problema já anteriormente apontado.


O outro custo excluído problemático é o decorrente de normas oriundas de outras entidades administrativas ou órgãos. Ainda que se pudesse argumentar em termos de limites de competência, esse argumento apenas seria válido se a Agência (ANTT) fosse intervir para reduzir o fardo regulatório de outra entidade ou órgão, o que não é o caso. Muito diferente é o trabalho de conhecer arcabouços normativos outros que influenciam no mercado regulado pela ANTT e, a partir disso, avaliar como tais normas influenciam (e podem a vir influenciar, nos casos de alterações) no mercado regulado pela ANTT. Caso emblemático e afeto à ANTT é exatamente o aqui já mencionado em relação ao financiamento das empresas – e, dentre elas, as empresas de transportes terrestres. O Decreto 10.411/2020 já excluiu da exigência de análise de impacto regulatório (AIR) aqueles normativos que dispõe sobre política cambial e monetária (Art. 3º, § 2º, IV), de modo que medidas afetas aos controles de fluxos de capitais (competência da CVM) – algo que beira o ilegal e inconstitucional, vez que deveriam ser atos motivados e justificados – e consequentes aportes para empresas escolhidas pelo capital estrangeiro para crescerem no Brasil não são transparentes nas suas justificativas e potenciais efeitos. Além da obscuridade original do decreto de AIR (que as exime de produzir informação sobre a norma), ainda são desconsideradas quando da metodologia, fazendo com que as regulamentações da ANTT operem em solo instável – e mais instável e inseguro ainda, portanto, a redução do arcabouço normativo, visto que – como demonstrado – não está suportado em bases sólidas (premissas não aplicáveis ao caso brasileiro, documento incompleto e com problemas metodológicos).


5 Nada mais do que meras palavras

Problema grave não mencionado na norma é a designação do objetivo como “fortalecer as boas práticas regulatórias baseadas em evidências” e a definição “Análise de Impacto Regulatório - AIR: processo sistemático de análise baseado em evidências”. Em que pese a nomenclatura de efeito emocional (já vimos essa estratégia em “falha regulatória” mesmo em casos que não são falhas; em “fardo regulatório” mesmo em casos que a norma protege o consumidor e a saúde econômica do capital nacional), a vinculação de um processo de análise ao “baseado em evidências” é problemático do ponto de vista metodológico, vez que as evidências que sustentam a decisão, nesses casos, são decorrentes apenas de métodos indutivos – observações empíricas e interpretações naturais, sejam qualitativos ou compilados em bases quantitativas –, impossibilitando a revisão do próprio método a ser adotado. Quando se vincula a análise à “evidência”, vez que as evidências são conclusões de análises anteriores, conforma-se um viés de conformação típico dos processos indutivos, que paralisam o processo de conhecimento da realidade de funcionamento do mundo (no nosso caso, dos mercados regulados).


Outro problema são as metas de redução do fardo regulatório, o que só poderá ser atingido com a efetiva redução do fardo regulatório, o que não é algo necessariamente desejado. O desejado é a análise crítica do arcabouço regulatório, de modo que a redução é uma consequência quando justificada e não uma premissa ou necessidade para ser metrificada.


Não se considera um problema lógico – intransponível – a adoção de metas sem a execução anterior de determinada metodologia, vez que elas podem ser determinadas a partir de outras entradas de dados, algo que é, inclusive, recorrente. Projetos piloto, usualmente, têm as suas metas determinadas, primeiramente, pela força de trabalho disponível e os recursos a serem investidos no projeto piloto. É a partir da amostragem dos resultados do piloto que se atualizam as metas quando da generalização do projeto (aplicação em escala produtiva). Assim, as “metas de rotina”, no futuro, podem depender da aplicação anterior em piloto, mas a exigência de metas iniciais não é, em si, um absurdo lógico. Todo caso, o problema reside no conteúdo da metodologia inserida no manual e nas premissas ideológicas da resolução (pela redução acrítica do arcabouço regulatório): num caso como esse, nunca se pode estabelecer como meta a revogação de normativos – como prevê a estrutura atual –, mas tão somente metas de análises de normativos (e que sejam revogados ou alterados se assim se julgar benéfico para a sociedade).


6 Conclusões

É necessária a transparência e a publicização de todo o processo regulatório para a coleta de informações hoje inexistentes que subsidiarão a formulação de políticas regulatórias adequadas. Ora, as principais faltas metodológicas apontadas são a desconsideração das externalidades sociais e o viés de conformação decorrente das práticas “baseadas em evidências”, coisas que só são possíveis de serem resolvidas quando da abertura à sociedade e aos controles externos os procedimentos de análise usados na regulação. Isso foi visto aqui mesmo: com a abertura do manual metodológico e exposição da metodologia é que foram possíveis o controle prévio e a identificação dos seus problemas.


Aqui reside uma crítica também aos controladores externos, vez que também amarrados pelo critério estrito da legalidade, podem recair em fazer maus controles. Em se aplicando uma metodologia inadequada como esta, o atingimento dos números previstos na meta estabelecida não é sinal de uma atuação adequada da Administração Pública. O inverso também é verdade: o não atingimento das metas (já que as metas estabelecidas o foram de forma completamente alheia da realidade e dos objetivos sociais) também não significa necessariamente prejuízo do trabalho. Tudo isso incorre no risco de se perder o lastro da origem do problema – a própria metodologia – fazendo recair, indevidamente, o erro em outros locais (o servidor, a Agência, os consumidores), mas nunca em quem de direito: no caso, os propositores da metodologia e suas referências de base (ou seja, OCDE e suas recomendações, designando o que deve ou não ser feito no Brasil segundo os interesses majoritários dos países controladores do grupo).


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