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Transportadoras Rodoviárias de Passageiros Clandestinas baseadas em Aplicativos

Rafael Muller - ANTT/ES, @rafaelmuller776



1. Introdução

Venho defendendo que, enquanto reguladores (e seres humanos), devemos lutar pela boa convivência humana. Na regulação, isso se torna mais forte porque nos é previsto harmonizar interesses de vários atores do mercado (governo, empresas, usuários).


Esse harmonizar, entretanto, não se traduz num tratamento matematicamente padronizado ou na liberalização geral. É a diferenciação basilar entre "liberdade com espontaneidade" e "liberdade de exploração". Explorar, extrair os recursos, matar por ação ou inanição: isso não é exercício de direito de liberdade legítima de empresa, governo ou pessoa nenhuma. A convivência humana é, portanto, um imperativo anterior.


É preciso fazer, sim, julgamento de valor constante e adjetivar cada um dos substantivos das nossas atribuições. Devemos, pois, harmonizar interesses legítimos, e não qualquer interesse. Para tanto, temos leis, resoluções e uma série de outros normativos: ferramentas. É preciso lembrar, sim, que nossa função é harmonizar interesses legítimos e promover a convivência. Nossa função não é meramente empregar ferramentas sem qualquer critério. E critérios, ainda que parametrizados e quantificados, são, antes, juízos de valor. Invariavelmente, chegará um momento em que diremos: "bom/adequado" ou "mau/desadequado", ainda que usemos um número para fazê-lo ou travesti-lo.


E como passar dessa abstração teórica à prática? Defendo que espaços de construção coletiva de conhecimento, como um coletivo sindical, deva extrapolar as pautas sindicais tradicionais e debruçar-se, também, sobre pautas técnicas do trabalho. É publicizando o que pensamos, defendemos e fazemos é que divulgamos nosso valor e nos fortalecemos.


Estando na Agência Nacional de Transportes Terrestres, um problema regulatório que temos enfrentado contemporaneamente é o surgimento de transportadoras rodoviárias de passageiros clandestinas baseadas em aplicativos tecnológicos. Em se tratando de uma inovação tecnológica, o arcabouço jurídico atual tem agonizado para entender o fenômeno e lidar com ele. Defendo, nos casos em que a realidade fática e o mundo jurídico estão em descompasso, um regresso às bases filosóficas e linguísticas para compreender o panorama do fenômeno e, então, julgá-lo com base na harmonização dos interesses legítimos e da convivência humana.


Em verdade, trata-se de uma parametrização das leis e normativos aplicáveis ou não. Em vez de tentar aplicá-los todos sem critério, refletimos criticamente sobre eles a partir das premissas para julgá-los legítimos ou não e assim fazer a escolha. Não seguimos a gambiarra de dizer: "esse fenômeno A se parece um pouco com B e o senso comum tem se confundido entre A e B; logo, A = B". Como bons reguladores, fazemos uma longa anamnese sobre o caso: se o senso comum tem se confundido, qual a causa? tem sido ludibriado deliberadamente? por quem? quais os interesses de cada ator? são legítimos? se A e B se parecem, sob quais aspectos? diferenciam-se sob quais outros? quais desses aspectos são legítimos para classificar A e B?


Se um fenômeno não tem nome certo ainda no mundo jurídico, não sejamos precipitados em dizer: não há regulamentação, logo, nada se pode fazer. O fenômeno não se reduz ao nome que lhe é dado. Podemos - e devemos - abordar a questão a partir de suas características reais: o que ele faz? qual objetivo? qual interesse?


2. Premissas do Mundo Jurídico


O mundo jurídico é uma ficção de categorias forjada para organizar as relações humanas, sob a forte crença de que, assim, conseguir-se-á uma melhor convivência social. Entretanto, tão presente há tanto tempo na vida social, é comum o esquecimento desse seu caráter ficcional, havendo constante confusão entre os fenômenos reais (coisas “de fato”) e as adjetivações jurídicas dadas a eles (coisas “de direito”).


Em se tratando de ficções, não se impõem as mesmas leis da física mecânica aos objetos do mundo jurídico, sendo plausível, por exemplo, que um mesmo fenômeno (“de fato”) possa ser categorizado de modos igualmente legítimos e adequados quando da sua tradução para o mundo jurídico (“de direito”).


Tal premissa é relevante para o estudo em tela em virtude de se tratar da investigação de uma categoria jurídica “de direito”, a figura ficcional da “real infratora”. Como se pode perceber, o termo consagrado “real” em nada nos ajuda quando das interpretações, uma vez que se trata, em verdade, de uma categoria ficcional, e não real. Esse não deve ser motivo de alarde: é premissa também, decorrente dos estudos linguísticos de Saussure e vários de seus posteriores seguidores, que a significação é um processo arbitrário. Ou seja, não há nada na palavra escolhida que imponha aos falantes um significado pré-determinado. Usualmente – mas apenas usualmente, não sempre – os falantes procuram convencionar palavras que, no histórico da própria língua, tenham seus significantes associados mais facilmente a determinados significados. Infelizmente, não fora o caso da “real infratora”. Justificável: como o mundo jurídico (ficcional) é tão presente e há tanto tempo, dá-nos a impressão de ser tão real quanto a realidade fenomênica. Talvez essa tenha sido a lógica adotada pelos pioneiros que sugeriram tal significação.


Vamos aos exemplos: um ônibus (objeto real). Quem o produziu? Ainda que alguns advoguem em prol das montadoras, podemos nos lembrar que os produtores das peças (pneus, motores, vidros, ...) também o produziram. Todo objeto-sistema é uma composição de partes, somada às relações que as partes estabelecem entre si. A resposta, portanto, não é una.


Coloquemos um problema (funcionamento anômalo com causa desconhecida) e troquemos a pergunta por uma ficção jurídica e a pergunta está lançada: “quem é o real produtor? [que responderá juridicamente pela anomalia]”.


Mais um exemplo aproximativo: uma infração de transporte cometida. Quem cometeu? “De fato”, muito possivelmente o condutor. Era ele, e apenas ele, o responsável pelo veículo materialmente no ato. Há limites da ordem da física mecânica para que só possa ser uma pessoa (a ocupar o banco do condutor). Incorporemos as ficções jurídicas na pergunta e nas análises e está lançado o desafio: “quem é o real infrator?”. O condutor é motorista terceirizado de determinada empresa de transporte (ficção), conduzindo veículo de um quarto envolvido (ficção), em transporte contratado por um quinto envolvido (ficção), a um grupo diverso de usuários.


Se por um lado as ficções jurídicas impõem a dificuldade de mascarar os fenômenos reais, doutro dá-nos a liberdade de ultrajar deliberadamente as leis da física mecânica, que aqui não se aplicam. Por princípios de sociabilidade, compartilhamento de responsabilidades, etc., nem toda a culpa recai sobre o motorista, engajando também as empresas envolvidas (e seus sócios reais, no mundo “de fato”). A liberdade mecânica, portanto, é o argumento que há de nos permitir compreender que a “real infratora” (uma categoria ficcional, um adjetivo a ser dado a alguma pessoa física ou jurídica-ficcional) pode ser mais de uma.

Nas hipóteses em que as interpretações ficcionais dadas aos fenômenos reais importem mais de uma solução possível para o problema, fica a cargo dos “homens do Direito” (no modelo hierarquizado de sociedade hoje imposto à coletividade) optar livremente por um caminho a seguir: responsabilizar a todos solidariamente? Declarar publicamente que, em casos similares, será um ou outro o responsável jurídico pelo fato? Ou tantas quantas outras soluções ficcionais que possam decorrer da criatividade humana.


O processo decisional, então, poderá ser conduzido também de diversas formas. Num continuum, pode ser imposto autocraticamente e sem argumentos pelo mais alto superior hierárquico nas cadeias de poder social; ou quão mais debatido o possível, com argumentos sustentados sobre premissas anteriormente estabelecidas.


É aqui que o real escritor deste estudo se declara optante pela argumentação principiológica e amplo debate transparente. Contudo, na atual estrutura social, a decisão, sequer pelo modelo de processo decisional, cabe a mim. Ao que o estudo é meramente orientativo.


3. Modelagem do mercado atual


Analisemos, primeira e sumariamente, o contexto “de fato” do Brasil: extensas dimensões geográficas, profundas desigualdades sociais e econômicas, refletidas na distribuição geográfica e regional, decorrente do modelo econômico adotado historicamente. Não à toa, a Constituição “Cidadã” de 1988, farejando pistas sobre essa nefasta realidade, estabeleceu como objetivos fundamentais:


I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;


O modelo regulatório adotado hoje no Brasil é hegemonicamente compreendido como intermediário entre o modelo declaradamente autoritário do passado e o modelo social idealizado e nunca implementado. Ele [o Estado Regulador] “passa a atuar na regulação de monopólios, quando a competição é restrita ou inviável, evitando que a economia popular seja lesada, através do controle de preços e da qualidade dos serviços ou produtos” (MELO, 2010).


Apesar desse discurso, é de se recordar que a formação histórica do Estado Regular Brasileiro decorreu de mera nova roupagem dos modelos autoritários do passado, em coalizão com o poderio econômico da nova burguesia liberal, de modo a fazer a manutenção do poder oligárquico em detrimento do atendimento às demandas sociais (MATTOS, 2006).


O discurso do Estado Regulador enquanto intermédio, caminho do meio equilibrado, entre os interesses dos diversos grupos sociais ganha roupagem democrática quando esquecemos as proporções de fato do que são cada um dos grupos sociais. Sustenta-se, ainda, sobre o discurso tecnoburocrático recente de que pura cientificidade objetiva na aplicação dos métodos regulatórios, ignorando que toda decisão, antes, é política, vez que baseada em princípios a serem defendidos [não importa o quanto desejem ocultá-lo].


Isso posto, a modelagem do mercado atual é interpretável sob essas duas óticas principais: a) uma estática, com as ficções jurídicas interpretadas sob hermenêutica gramatical e positivista, partindo da premissa que as palavras têm significados sólidos em si mesmos, o modelo estaria posto e as ficções jurídicas são, em verdade, tão reais quanto os fenômenos [tese aqui não defendida]; b) uma dinâmica, com as ficções jurídicas lastreadas no projeto social instaurado pela Constituição, interpretadas sob viés constitucionalista, tendo por horizonte sempre os objetivos lá emanados e já supramencionados [tese aqui defendida].


Nas bases, após o debate político idealista (se o Estado regulador seria uma opção socialmente viável ou roupagem do modelo autoritário-liberal), as premissas operacionais (modelo do mercado regulado) assemelham-se, gerando o falso consenso que sustentou o discurso hegemônico de “Estado Equilibrado” para o Estado Regulador. Vamos a elas.


Primeiramente, reconhecem-se as desigualdades sociais e regionais do mercado de transportes de passageiros de longa distância brasileiro, seu caráter de interesse público (para fins de promover integração regional), seus custos afundados (barreira de entrada no mercado, favorecendo a tendência a monopólio) e, por fim, a necessidade de regulação.


Largado aos interesses do mercado, operar-se-ia exclusivamente os trajetos entre maiores centros, com maiores demandas, maximizando os lucros. Inacessíveis e pouco lucrativas as localidades ermas, isso estimularia o inchaço populacional nos grandes centros, causando externalidades de outras ordens (mobilidade, habitacional, empregatícia, etc.). O inchaço populacional em poucos centros dispersos favoreceria o próprio modelo do mercado de transporte de passageiros, uma vez que concentrariam os trajetos de interesses, concentrando a riqueza (decorrente da execução do serviço) e facilitando a sua exploração.

Mesmo em círculo vicioso, sob perspectiva exclusivamente gramatical, pode-se dizer que se trata, sim, de um modelo “autorregulado” e “autônomo”, de modo a hipervalorizar essa opção, em que pese suas nefastas consequências.


Há algum tempo, essas consequências, quando ainda ventiladas como externalidades negativas, foram o motivo do arcabouço normativo conhecido hoje: a separação entre serviços “regular” e “sob regime de fretamento”, com características e exigências próprias.


Em linhas gerais, a ficção jurídica “linha regular” criada serviu para categorizar aqueles trajetos de maior interesse público, com atendimento prioritário às necessidades sociais e regionais. Assim, uma série de requisitos foram abarcados: gratuidades, benefícios, obrigatoriedade na execução da viagem, esquemas operacionais, frequência mínima, etc. Os custos tendem a ser maiores para o atendimento a tais requisitos, com lucros variáveis entre regiões de alta e baixa demanda, situação tamponada com a regulação dos preços (já derrubada frente às últimas atualizações) e lotes de outorga (esquema de subsídios cruzados).


Já a ficção jurídica “viagem sob regime de fretamento” serviu para atender aos casos excepcionais, viagens, em geral, de cunho turístico, raramente associada a necessidades umbilicais de sobrevivência e convivência humana ou acesso a recursos e serviços prestados somente em outras localidades. A exploração econômica, sendo exceptiva, dá-se sobre um excedente de demanda eventual, com efeitos normalmente minoritários sobre os rendimentos das linhas regulares. Exatamente por isso, sob a premissa de liberalização do mercado, foi ofertada a benesse de desobrigar vários dos requisitos previstos para a linha regular.

Com a liberdade de preços e menores custos, havia o risco de o fretamento sugar recursos a partir das fontes mais lucrativas das linhas regulares, desabastecendo, por extensão, também os trajetos inviáveis economicamente (que são alimentados pelos subsídios cruzados das fontes mais lucrativas). A solução foi a inserção de mais uma ficção jurídica: o “circuito fechado”. Fixando os pares origem-destino e o grupo contratante, separam-se duas categorias ficcionais de usuários: os que precisam viajar; e os que querem viajar.


Os que precisam viajar costumam depender das gratuidades e benefícios, ou dos horários das linhas e da garantia da realização da viagem, ou das localidades atendidas. Dificilmente possuirão recursos financeiros para sustentar a operação dessas linhas (o beneficiário das gratuidades é o exemplo típico; mas a assertiva é válida para o usuário pagante do veículo que viaja com baixa lotação, uma vez que não é apenas a sua passagem que compensa o custo da viagem).


Os que querem viajar, ao contrário, não dependem da viagem, podendo abster-se de realizá-la em caso de indisponibilidade, preço, ou outro motivo. São usuários que possuem os recursos financeiros para sustentar a operação das viagens (como as viagens são opcionais e podem ser realizadas apenas com lotação suficiente, em grupo, os usuários cobrem os custos daquela viagem). O excedente dos preços pagos pouco importa ao usuário desinformado e ignorante: vá ele para os cofres da(s) empresa(s) operadora(s); vá para o subsídio cruzado, salvaguardando o atendimento às necessidades dos outros.


O mundo “de direito”, portanto, é um abarrotado de ficções jurídicas: linha, fretamento, circuito fechado, subsídio cruzado, usuário necessitado, usuário desejoso, etc.), enquanto no mundo “de fato” temos pessoas em deslocamento dentro de ônibus.


Lembremos, das premissas, que o motivo de ser do mundo ficcional “de direito” é uma melhor convivência social, traduzível em: “sociedade livre, justa e solidária”.


Por “livre”, podemos entender a “liberdade liberal”, liberdade de exploração do outro, quando o meu poder o permitir; ou a “liberdade com espontaneidade”, liberdade para cada um conduzir sua vida como lhe bem aprouver (o que só é possível quando o acesso aos recursos mínimos de vida digna é garantido).


Por “justa”, podemos entender a “justiça de Trasímaco”, sádico n’A República de Platão que defende que "o homem justo deve fazer mal aos inimigos e bem aos amigos" (PLATÃO, A República [recurso eletrônico]. Organização: Daniel Alves Machado – Brasília: Editora Kiron, 2012). De modo que o empresário burguês que explora livremente a sociedade (identificada como inimiga) em benefício próprio e dos seus amigos oligarcas é um justo. Ou a “justiça humanitária”, um abarrotado espinhoso de aspirações éticas e autoaperfeiçoamento embebidas em sentimentos, que misturam, nas palavras de Edward Carpenter (citado por Liev Tolstói): “a compaixão, a afeição, a inclinação para a solidariedade” (TOLSTÓI, Liev. Os últimos dias [recurso eletrônico]. São Paulo: Companhia das Letras, 2012).


Querer retirar da conformação das ficções jurídicas toda a subjetividade (emoção) e o seu caráter político (o desejo por um ideal) é, tacitamente, defender a justiça de Trasímaco e a liberdade liberal.


Por esse motivo mesmo é que os princípios devem vir antes das métricas objetivas e ficções jurídicas estabelecidas (meramente instrumentais), sendo eles os critérios de legitimidade para estas.


4. Caracterização dos serviços regulares


A Resolução ANTT 4770/2015 estabelece os critérios para que determinada viagem possa ser categorizada enquanto ficção jurídica “regular”. Tais critérios incluem a designação e aprovação, anteriores à execução do serviço, dos seguintes itens:


I - os mercados que pretende atender;

II - relação das linhas pretendidas, contendo as seções e o itinerário;

III - frequência da linha, respeitada a frequência mínima estabelecida no Art. 33 desta Resolução;

IV - esquema operacional e quadro de horários da linha, observada a frequência proposta;

V - serviços e horários de viagem que atenderão a frequência mínima da linha, estabelecida no Art. 33 desta Resolução;

VI - frota necessária para prestação do serviço, observado o disposto no art. 4º da Lei nº 11.975, de 7 de julho de 2009;

VII - relação das garagens, pontos de apoio e pontos de parada;

VIII - relação dos terminais rodoviários;

IX - cadastro dos motoristas; e

X - relação das instalações para venda de bilhetes de passagem nos pontos de origem, destino e seções das ligações a serem atendidas.


Além desses, estão incluídos os benefícios tarifários concedidos a idosos, pessoas com deficiência, jovens e crianças, previstos em diversos outros dispositivos (https://portal.antt.gov.br/beneficios-tarifarios).


Comprovados os requisitos e avaliado o contexto do mercado pretendido, a ANTT fornece a Licença Operacional (LOP) atestando o adjetivo “linha regular” às viagens realizadas com tais características.


5. Caracterização dos serviços sob regime de fretamento


A Resolução ANTT 4777/2015 estabelece os critérios para que determinada viagem possa ser categorizada enquanto ficção jurídica “fretamento”. Aí ganha posição de centralidade o “circuito fechado” e a ocasionalidade:


VI - Fretamento turístico: o serviço prestado por autorizatária, para deslocamento de pessoas em circuito fechado, com exceção dos casos previstos nesta Resolução, em caráter ocasional, com relação de passageiros transportados e emissão de nota fiscal de acordo com as características da viagem, que deverá ser realizada conforme as modalidades turísticas definidas em legislação;

VII - Fretamento eventual: o serviço prestado por autorizatária, para deslocamento de pessoas em circuito fechado, com exceção dos casos previstos nesta Resolução, em caráter ocasional, com relação de passageiros transportados e emissão de nota fiscal de acordo com as características da viagem, que ocorrerá sem interesse turístico;

[...]

XIV - Circuito fechado: viagem de um grupo de passageiros com motivação comum que parte em um veículo de local de origem a um ou mais locais de destino e, após percorrer todo o itinerário, observado os tempos de permanência estabelecidos nesta Resolução, este grupo de passageiros retorna ao local de origem no mesmo veículo que efetuou o transporte na viagem de ida; [destaques nossos]


Comprovados os requisitos e avaliado o contexto do mercado pretendido, a ANTT fornece a Licença de Viagem (LV) atestando o adjetivo “viagem fretada” às viagens realizadas com tais características.


6. Caracterização de serviço clandestino


A Resolução ANTT 4287/2014 estabelece os critérios para que determinada viagem possa ser categorizada enquanto ficção jurídica “clandestino”.


Trata-se de uma definição negativa e complementar: “Considera-se serviço clandestino o transporte remunerado de pessoas, realizado por pessoa física ou jurídica, sem autorização ou permissão do Poder Público competente”.


Significa dizer: não se enquadrando nas formas positivas amostrais (“regular” e “fretamento”), está-se diante do complemento ao universo de viagens com viés econômico (pois, “clandestino”).


7. Tipos de Usos de Aplicativos nos diversos serviços


No mundo “de fato”, existem pessoas dispersas pelo país que precisam e/ou querem viajar, e cuja necessidade ou vontade deve ser atendida segundo os ditames das premissas adotadas (o transporte é, inclusive, direito social constitucionalmente previsto no Art. 6º). Nem todas estão localizadas na mesma origem e podem se agrupar em número suficiente para custear, por conta própria, suas viagens.


No afã de se ampliar o direito a um maior número de pessoas, foi criado um arcabouço de ficções jurídicas para redistribuir custos e recursos, ao que podemos qualificar como um tipo de “justiça redistributiva”. Dentre elas, já expostas, a diferenciação entre linha regular e fretamento, o subsídio cruzado, os lotes de linhas regulares do mercado, o circuito fechado, etc. Todas essas que operam em conjunto e têm a sua eficácia dependente desse conjunto.


A tecnologia surge como um instrumento para a realização das necessidades e/ou vontades das pessoas. Essas necessidades e/ou vontades podem ser agrupadas de várias formas. Uma delas diz respeito aos danos sociais: elas podem ser egoísticas (atendem ao interesse privado do usuário, prejudicando a coletividade) ou altruísticas (atendem aos interesses da coletividade).


A razão de ser de todo o mundo jurídico é, em tese, a melhoria da convivência humana, de modo que se estrutura com o objetivo de promover os interesses da coletividade (ainda que não o consiga realizar sempre, em especial quando cooptada, subvertida e mal interpretada). Desse modo, as ficções jurídicas devem ser capazes de autorizar a tecnologia altruística (bem-vinda) e coibir a tecnologia egoística (prejudicial).


No meio dos transportes rodoviários de passageiros de longa distância, o arcabouço ficcional que garante a justiça redistributiva já está estabelecido. Um meio viável de análise das tecnologias vindouras para sua categorização em egoística ou altruística é, portanto, a identificação se opera em prol das ficções pensadas para a ampliação dos direitos da coletividade (altruística) ou visa destruí-las em favor do interesse privado (egoística).


Assim, aplicativos que se adequam às ficções existentes e facilitam, por exemplo, a venda de passagens das linhas regulares autorizadas, são altruísticos. É o caso do Clickbus. Doutro lado, aplicativos que propõem ficções jurídicas outras não existentes (ex.: “fretamento colaborativo”), de modo a eliminar as ficções com intenção redistributiva, em prol de ficções com intenção privatista, são tecnologias egoísticas. Seu objetivo é, por exemplo, atender ao interesse egoístico do grupo interessado no mesmo par origem-destino e em número suficiente para custear a viagem, prejudicando todo o resto da população que não goza dos mesmos privilégios. Em que pese o termo aparentemente pomposo “colaborativo”, o modelo (adotado por empresas como Buser, Flixbus, Wemobi) não contribui para o atendimento aos interesses da coletividade, sendo, pois, egoístico. Já sabemos, de outrora neste mesmo texto, que a relação de significante e significado é arbitrária. Assim, o uso do termo significante “colaborativo” pelos idealizadores da farsa jurídica não implica num significado socialmente positivo, como a noção de “colaboração” poderia sugerir.


8. Definição da Real Infratora


Foram demonstradas: a) como se estabelecem as relações “de fato” no meio dos transportes rodoviários de passageiros de longa distância; b) as respectivas ficções jurídicas que sustentam a saudabilidade da convivência humana nesse meio, com justiça redistributiva; c) as ficções [farsas] jurídicas criadas por aqueles que pretendem prejudicar a saudabilidade coletiva em benefício próprio (lucro empresarial). Passamos agora ao estudo dos meios para o combate às farsantes.


No mundo jurídico, além das ficções metodológicas (circuito fechado, subsídio cruzado, etc.), há as categorias ficcionais. Uma empresa, por exemplo, é uma categoria ficcional, um objeto do mundo jurídico-ficcional que age, de modo que ganha o título de “pessoa jurídica”, por exemplo. Para o combate jurídico às farsantes, é preciso primeiro categorizá-la enquanto “real infratora” (ficção jurídica adjetiva específica da empresa farsante que age para prejudicar a saudabilidade coletiva) e, depois, usar das ficções metodológicas criadas para o combate (a exemplo das autuações, multas pecuniárias, etc.).


No caso em tela, em se tratando da operação clandestina (como descrito em tópico específico) das empresas farsantes, a ficção metodológica combativa é uma: “executar serviços de transporte rodoviário interestadual ou internacional de passageiros sem prévia autorização ou permissão” (Res. ANTT 233/2003). A clandestinidade é uma ficção negativa e complementar, de modo que, em executando o serviço sem autorização, está caracterizada a infração e a real infratora.


Aqui é relevante resgatar nossas premissas, ao início deste mesmo texto:


Mais um exemplo aproximativo: uma infração de transporte cometida. Quem cometeu? “De fato”, muito possivelmente o condutor. Era ele, e apenas ele, o responsável pelo veículo materialmente no ato. Há limites da ordem da física mecânica para que só possa ser uma pessoa (a ocupar o banco do condutor). Incorporemos as ficções jurídicas na pergunta e nas análises e está lançado o desafio: “quem é o real infrator?”. O condutor é motorista terceirizado de determinada empresa de transporte (ficção), conduzindo veículo de um quarto envolvido (ficção), em transporte contratado por um quinto envolvido (ficção), a um grupo diverso de usuários.

Se por um lado as ficções jurídicas impõem a dificuldade de mascarar os fenômenos reais, doutro dá-nos a liberdade de ultrajar deliberadamente as leis da física mecânica, que aqui não se aplicam. Por princípios de sociabilidade, compartilhamento de responsabilidades, etc., nem toda a culpa recai sobre o motorista, engajando também as empresas envolvidas (e seus sócios reais, no mundo “de fato”). A liberdade mecânica, portanto, é o argumento que há de nos permitir compreender que a “real infratora” (uma categoria ficcional, um adjetivo a ser dado a alguma pessoa física ou jurídica-ficcional) pode ser mais de uma.


As ficções jurídicas são o instrumento adotado para a redistribuição de responsabilidades, em especial em cadeias hierárquicas de poder. Do contexto, sabemos que o motorista é o elo mais fraco, obrigado por uma estrutura econômico-social e agir conforme determinações das empresas (ficções jurídicas egoísticas) para sobreviver. A estratégia pública historicamente usada é o recurso ao Estado: para os que defendem um modelo de contrato social, o Estado assume a responsabilidade de defender os seus cidadãos em troca da liberdade destes. Pois, nesse caso, tal qual em tese implantado no Brasil contemporâneo, é função do Estado redistribuir a carga de responsabilidade que recairia sobre o vulnerável (motorista) no mundo “de fato” e lançá-la a outras pessoas (via sistema de ficções jurídicas): os sócios das empresas contratantes.


Por esse olhar, toda a cadeia de terceirizações, pejotizações, aluguéis, etc. não se trata mais do que um sistema de ficções jurídicas usadas para redistribuição de responsabilidades. Pelo viés da justiça redistributiva, os mais poderosos na hierarquia de poder [econômico, no caso] devem assumir a maior carga de responsabilidade, de modo a equalizar parcialmente a conta.

No mundo “de fato”, a prestação do serviço de transporte é um aglomerado de etapas, que pode seguir uma diversidade de metodologias. Para o mundo “de direito” (jurídico, ficcional), isso foi traduzido nos termos do Art. 730 do Código Civil (Lei 10.406/2002): “Pelo contrato de transporte alguém se obriga, mediante retribuição, a transportar, de um lugar para outro, pessoas ou coisas”. Implicitamente, os requisitos para caracterizar a execução do serviço de transporte é a transposição do sujeito (no caso de passageiros) de uma origem a um destino.


Sabendo que, portanto, todas as empresas envolvidas no sistema de ficções jurídicas, conjuntamente, são as prestadoras do serviço de transporte, todas são potenciais “reais infratoras” (como já demonstrado, no mundo jurídico-ficcional não há nenhuma obrigatoriedade de que seja apenas uma). Nesse caso, a decisão de quem autuar (no caso de se optar por autuar apenas uma), é absolutamente política. Nos termos deste mesmo texto, ao início:


Nas hipóteses em que as interpretações ficcionais dadas aos fenômenos reais importem mais de uma solução possível para o problema, fica a cargo dos “homens do Direito” (no modelo hierarquizado de sociedade hoje imposto à coletividade) optar livremente por um caminho a seguir: responsabilizar a todos solidariamente? Declarar publicamente que, em casos similares, será um ou outro o responsável jurídico pelo fato? Ou tantas quantas outras soluções ficcionais que possam decorrer da criatividade humana.


No caso da interferência por aplicativos egoísticos na prestação de serviço de transporte, uma das teses sustentadas é pela autuação da proprietária do veículo ou empresa autorizatária de fretamento envolvida na trama ficcional. Tal hipótese é viável, legítima e está alinhada com o arcabouço ficcional criado até certo ponto.


A este ponto do texto, já não deve haver dúvidas de que se trata de transporte clandestino. O mercado explorado é o de linhas regulares, sem autorização para tanto, uma vez que toda a estrutura ficcional autorizada está atrelada ao fretamento (emissão de licença para viagem fretada por autorizatária habilitada para fretamento).


A argumentação que se segue busca, então, responsabilizar a empresa autorizatária ou proprietária do veículo, porém por um método inadequado. Lembremos mais uma vez, como já postulado e demonstrado, que o método argumentativo deve partir das premissas e do mundo real, para então buscar as ficções jurídicas adequadas a cada caso. Fora dito, ao fim:


Por esse motivo mesmo é que os princípios devem vir antes das métricas objetivas e ficções jurídicas estabelecidas (meramente instrumentais), sendo eles os critérios de legitimidade para estas.


Os argumentadores dessa tese fazem o contrário: buscam nas ficções jurídicas (normativos de modo geral) os textos que mais se parecem gramatical e lexicamente com o problema. Ora, uma vez que a empresa fora já cunhada de “transportadora”, registrou-se enquanto operadora do mercado de fretamento, possui veículos e motoristas habilitados, etc., nada mais intuitivo do que ser ela a “real infratora” de uma infração identificada no mercado de transportes.


Mais uma vez: meras palavras, arbitrariamente selecionadas.


Outra tese, [mais] viável, [mais] legítima, também alinhada com o arcabouço ficcional criado, é a de imputar a infração à empresa detentora do aplicativo egoístico. Essa tese é menos intuitiva porque, do ponto de vista de aproximações léxicas, a empresa infratora pouco se parece com uma transportadora, recebendo, inclusive, a titulação perante a Receita Federal (CNAE) de “empresa de tecnologia”.


Entretanto, não é a intuição que determina a credibilidade de qualquer tese. Da história da epistemologia conhecemos, por exemplo, a evolução do pensamento a respeito da gravitação dos corpos. É mais intuitivo a alguém na terra e desprovido de instrumentos ou conhecimentos prévios pensá-la plana. O método, entretanto, veio propor uma tese diversa, mais adequada à realidade atual.


No mundo jurídico, o método [que nos parece] mais adequado e sugerido é pelo desvelamento das ficções jurídicas, com a abordagem guiada pelo mundo “de fato” e princípios e premissas defendidas. Esse método está alinhado com o motivo de ser próprio de toda a ciência jurídica (tentar promover melhor convivência humana).


A “empresa de tecnologia” (perante a Receita Federal) é, portanto, uma “transportadora” (perante a ANTT). Uma ficção jurídica aplicada a um contexto (fiscal) não exclui a sua aplicação a outro (regulatório de transportes). Sabidamente “transportadora”, é também “clandestina”, posto que não obteve autorização para operação do mercado explorado (linhas regulares).


Partindo do mundo real, é notável que é essa mesma empresa que coloca em funcionamento todo o esquema de desmonte das ficções jurídicas de defesa da justiça redistributiva (ela emprega a tecnologia egoística; ela ludibria e desinforma os usuários a respeito do real funcionamento do mercado regulado; ela cria por vontade privada as farsas jurídicas – “fretamento colaborativo” – que tentam se passar por ficções jurídicas legítimas; ela sonega os subsídios cruzados que sustentam financeiramente o mercado; etc.).


Não surpreendentemente, é ela também a maior dotada de poder simbólico e econômico, capaz de contratar/terceirizar parte relevante da sua máquina de dominação. A parte contratada mais tangível são os motoristas e veículos, sempre de terceiros. Entretanto, estudando o esquema a partir do mundo real e dos princípios, vê-se que ela contrata até ficções jurídicas para assumir a responsabilidade que é sua.


Ora, essa empresa farsante sabe que grande parte dos juristas e doutrinadores não estão adequadamente instruídos sobre o método baseado nos princípios e, erradamente, guiam-se por meras aproximações gramaticais e lexicais. Ao embutir uma outra empresa “transportadora” na malha ficcional, é fácil que juristas cedam à sua intuição e cheguem à conclusão lexical de que a transportadora é a contratada/terceirizada, isentando de responsabilidade aquela que se diz “de tecnologia”.


Por todo o exposto,


fica a cargo dos “homens do Direito” (no modelo hierarquizado de sociedade hoje imposto à coletividade) optar livremente por um caminho a seguir: responsabilizar a todos solidariamente? Declarar publicamente que, em casos similares, será um ou outro o responsável jurídico pelo fato?


Deixe-se por fim registrado, entretanto, que optar pela indicação exclusivamente da empresa contratada/terceirizada como real infratora é uma decisão contrária à razão de ser de todo o mundo jurídico e, por extensão, à nossa Constituição.


Mundo jurídico e Constituição alinham-se à justiça redistributiva, de modo que a maior causadora dos danos à convivência humana no setor não pode ser eximida de sua responsabilidade. As opções justificáveis, por essa linha, seriam a responsabilização solidária (autuação de todas as envolvidas enquanto reais infratoras) ou a responsabilização da maior contratante no esquema (autuação da empresa que opera a tecnologia egoística enquanto “transportadora” para o mundo da regulação de transportes).

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